segunda-feira, 21 de março de 2011

Remissão impossível

Contado, ninguém acredita. A minha mãe pede-me que vá com ela a Fátima. Ela sabe o que eu penso sobre o assunto, mas sabe também que, se mo pede, vou com ela de bom grado. Na verdade, creio que nem suspeita da minha esquizofrénica relação com as igrejas. Considero-as todas um exercício oligárquico de poder irracional sobre os mais desgraçados. Nutro uma incontrolável indiferença calvinista por quase toda a arte religiosa. Ao mesmo tempo, porém, nenhum outro lugar público me transmite tanta calma como as igrejas. Em Coimbra, passei centenas de horas na Sé Velha a estudar, por ser ali que, no mundo todo, melhor se sente a serenidade temperada da chuva, como do sol.

É este o sentimento que transporto comigo quando entro em Fátima. Ao subir aquele formidável santuário, a minha mãe guia-me até à lotada capelinha das aparições, onde dezenas de pessoas silenciam ladainhas do rosário e ouvem o sermão do pároco. Emocionada, a minha mãe presta contas íntimas com a vida. Eu fico cá atrás, parado a observar todo este ritual que quase nada me diz,  mas é-me óbvio perceber a dor e a catarse que aquele recinto produz.  Exorto-me, pois, ao silêncio. Chora-se muito por trás de óculos de marca. Deixo-me envolver nos dramas que eu mesmo fantasio.

Pois estou eu neste fingimento pessoano quando reparo, de repente, na camisola do homem que está à minha frente. Escrita em letras garrafais nas suas costas, leio a seguinte frase:

"Mother fucking mountaneer".

"Mother fucking mountaneer".

Tal e qual.

Como vos disse, contado, ninguém acredita. Por isso, decido-me tirar uma fotografia. Várias.

 

Motherfm

Note-se que a minha pulsão pela iconoclastia não é pequena. Mas também não esperava tamanho incentivo. Não consigo deixar de pensar que aquele homem decidiu, como a minha mãe decidira, ir a Fátima nesse dia. E, ao ter de decidir, nessa manhã, o que iria levar vestido, achou que, de todas as camisolas que tem, aquela seria a melhor camisola para levar ao santuário da mãe de Jesus Cristo. Aquela sim, aquela é que está bem. E, pelo que me é dado perceber, apenas eu reparo na insolência têxtil daquele tipo. É a mim, ao menos prosélito de todos quantos entraram naquele dia, naquele lugar, que a camisola parece incomodar.

Ficarei sempre boquiaberto com a impertinência descarada destes católicos postiços e descuidados que conheci a vida inteira. Já pensei em tudo o que possa absolver o tipo. De nada adianta. Creio que nem o faz por mal. Apenas faz e é e pronto.

Chamo a isto a "Remissão impossível". Que diabo. Bem sei que o Livro diz que Cristo teve de subir a uma montanha para proferir um sermão, mas também não creio que isso tenha feito dele um montanheiro incestuoso.